Uma Romaria centenária, uma festa que é muito mais que uma festa!

“É o entusiasmo môço que as promove, a fé inquebrantável dos rapazes, essa plêiade de jovens, simpáticos e alegres, que marcam numa resolução a tomar, numa obra a resolver, embora difícil e monumental – o nosso orgulho, a nossa esperança de amanhã.

Eia pois, avante, môços amigos, punhado de simpáticos e ousados rapazes, exemplo de trabalho e abnegação, com essa vida toda, a vossa energia e fé, lembrando-vos que foi com igual fé, força e vontade, que se venceu a batalha de Aljubarrota, glória dos portugueses de antanho”.

Pelo estilo épico, pela exortação quase bélica, pela referência à batalha de Aljubarrota, poderia o leitor acreditar que o extracto que vem de ler se referiria a um qualquer momento em que a Pátria esteve em perigo e foi necessário defendê-la, ou, então, se trataria de estímulo a empresa transcendente, exigindo coragem e empenho desusados, em missão difícil mas irrecusável.

Não perigou a Pátria, a batalha seria só metáfora, mas a empresa era e continua transcendente, mobiliza a vontade e a força, num espírito que, de forma quase comovente, continua a passar, reforçado, de geração em geração.

O extracto é parte do editorial do jornal “O Povo da Barca” de 25 de Julho de 1933 e assume-se como manifestação de apoio a um grupo de rapazes que, nesse mês, ajudados pela Câmara e pela Assembleia, iniciavam os preparativos para as Festas de S. Bartolomeu que no ano anterior tinham passado a designar-se Festas do Concelho. 

Se descontarmos o estilo, marcado pela época, é pequena a distância que separa o empolgamento dessas linhas daquele que um barquense dos nossos dias poderia exprimir quando afirma que não trocaria a presença na Barca, durante a Romaria, por nada deste mundo.

O S. Bartolomeu é muito mais que uma Festa!

É um estado de espírito, uma espécie de doença feliz, uma euforia colectiva que, em cada ano, transporta até nós o apelo das raízes, da nossa cultura popular, da nossa memória, irmanando mesmo os desavindos, levando-nos a abraçar desconhecidos, a gastar energias que a exigência dos dias e das noites não corrompe, a esquecer desfeitas e desgostos, a cantar, como se o sentimento subisse com a voz, vezes sem conta, em uníssono, a Marcha da Barca.

Memórias que se cruzam, se misturam, como num filme colorido pela emoção : a montagem da ornamentação, a discussão, sempre acalorada, sobre a qualidade do programa, a ida aos carrinhos nos alvores da infância, a majestade das bandas subindo a vila, uma voz que se ergue, amparada pelas concertinas, numa desgarrada, as rodas do Largo do Urca, a procissão, solene, estendendo-se pelas ruas, a alegria orgulhosa das rusgas, as noites que se prolongam na madrugada, um olhar entrevisto na multidão e que o tempo não apaga, o dia nascendo e nós como sentinelas, pastores do desmedido, sugando a festa até ao tutano, até ao âmago da euforia.

Elos de uma tradição secular, repetimos gestos, palavras, emoções que já outros repetiram e outros repetirão um dia – nos passos de uma chula, na afirmação de que não há festa igual, no despertar para a folia ao toque dos gaiteiros, na nostalgia que o último foguete torna irreparável anunciando o início do Inverno em pleno Verão porque o S. Bartolomeu terminou.

Mas como foi que esta história começou?

É difícil situar com absoluta precisão a data de início das festas. Dois textos publicados no “Povo da Barca” – que, a partir de 1899, é uma fonte importantíssima e em muitos casos única de informação sobre a romaria – ambos assinados com as iniciais E.P., um datado de Junho de 1943 e outro de Agosto de 1946, situam o aparecimento das festividades no século XVI. O autor faz referência à existência de uma “feira de gados, cereais, linho e cortiça”, acrescentando que ganharam fama “por todas as terras do Minho”.

Não conheço qualquer documento que avalize uma data tão longínqua, parecendo-me essa possibilidade altamente inverosímil, até pelo facto de a capela do Santo haver sido apenas edificada na segunda metade do século XVIII.

Editado, então, a partir de 1899, “O Povo da Barca” faz, logo nos seus primórdios, vastas referências às “tradicionais e antigas Festas de S. Bartolomeu”. Ora, se já eram consideradas tradicionais e antigas em finais do século XIX e tendo em conta a data de construção da capela, parece-me poder afirmar-se sem grande margem de erro que as festas terão começado a realizar-se – primeiramente com uma componente apenas religiosa – entre o início e meados desse século, inicialmente junto à capela e estendendo-se, posteriormente, pela carreira de Santo António e por toda a rua de S. Bartolomeu.

Em 1902, eram já consideradas pelo jornal como sendo “das primeiras do Minho, pela importância da sua feira e numeroso concurso de forasteiros”.

Em 1903, destacava-se no programa a “brilhante iluminação”, na carreira de Santo António, um bazar de prendas, “algumas de grande estimação”, e, pelas 16 horas do dia 23 de Agosto, uma “atraente e palpitante corrida de bicicletas na qual estão inscritos corredores da Barca e dos Arcos”. Nesse ano, a comparticipação da Câmara foi de “15 réis”.

Em 1904, foram muito apreciadas as actuações das bandas de música de S. Martinho da Gandra, de Vila Nova de Muia, de Touvedo (Salvador) e da Banda Barquense. As iluminações, a cargo de Luís de Queirós Ribeiro, não puderam brilhar pelo muito vento que se fez sentir durante as Festas.

Dois anos depois, em 1906, dezoito dias antes da data em que o S. Bartolomeu costumava realizar-se, não havia, ainda, comissão formada, o que motivou um pungente apelo por parte do jornal. Curiosamente, a comissão vem a ser formada exclusivamente por raparigas, o que leva “O Povo da Barca” a escrever que “os rapazes da terra têm sangue de capilé”.

Em 1907, a ornamentação vai, pela primeira vez, até junto da capela de Santo António. Tratava-se das tradicionais ornamentações de “pau e corda”.

No ano de 1915, as “brilhantes actuações” das Bandas dos Arcos e Aboim da Nóbrega “demoraram as pessoas até altas horas da manhã”.

Em 1921, “O Povo da Barca” relata que as festas foram “as melhores de sempre”, afirmação que será recorrente ao longo dos anos, para o que muito contribuíram as actuações da Banda Barquense e da Banda Gandarense, bem como as “espantosas sessões de fogo, a cargo de Joaquim Leitão Loureiro, desta vila, e José António de Sousa, de Oleiros”.

Na edição de 1924, teve lugar aquela que foi considerada, até então, “a maior feira do linho de sempre”.

As festas entram, depois, num período de declínio, “resumindo-se a uma feira de alguns cortiços e venda de gaitas de barro na rua”, o que leva a Câmara, em 1932, num esforço para as reerguer, a atribuir-lhes a designação de Festas do Concelho. Nesse ano, organizadas pela Assembleia, são consideradas, uma vez mais, “as maiores de sempre”, “o entusiasmo durou até altas horas da noite” e foi inaugurado, no dia 23, o abastecimento de água à vila a partir de uma captação no Monte de Santa Rita. Como única nota negativa, a organização teve um prejuízo de…800 escudos.

O ano de 1935 assistirá, pela primeira vez, à realização de um grande cortejo regional, “com prémio para o melhor gado e traje”, para o qual “as moçoilas das aldeias se preparam com grande afinco, embora com alguma vergonha”, e de uma serenata no rio Lima, tendo sido convidado a assistir o governador civil do distrito.

Em 1939, um facto atesta a grande importância da Romaria. Tendo a guerra civil espanhola terminado, apenas, alguns meses antes, a 1 de Abril, a Câmara consegue que o governo autorize a abertura da Fronteira da Madalena – Lindoso durante os dias de festa.

Nesse ano, a 1 de Setembro, com a invasão da Polónia, tem início a 2ª Guerra Mundial. Logo em 1941, “O Povo da Barca”, a um mês da romaria, faz “um grande apelo à participação dos Barquenses nas suas festas, apesar de serem tempos de desassossego e fome”.

A guerra irá condicionar a edição de 1942, ano em que houve “uma grande afluência de espanhóis”, tendo e Electra Del Lima, em época de contenção,exigido que a electricidade fosse desligada à meia noite, não cedendo aos pedidos da Câmara para que fosse desligada apenas à 1h30 da madrugada.

As festas de 1944 serão marcadas pelas comemorações dos quinhentos anos da instituição da freguesia de S. João Baptista de Ponte da Barca. A serenata no rio Lima contou “com dezenas de barcos profusamente iluminados”.

Em Agosto de 1945, “O Povo da Barca” afirma categoricamente que as festas de S. Bartolomeu “são das maiores do país”.

Dando voz a um aspecto que ainda hoje marca as festas, escreve-se, em 1947, que “a alegria do povo é que importa; as ornamentações e o programa são paisagem”. Curiosamente, no que ao programa diz respeito, um dos destaques desse ano foi uma demonstração pública das “máquinas eléctricas SIMAR, maravilha da indústria suíça”.

Em 1948, são asperamente criticadas as ornamentações, pela sua falta de qualidade, escrevendo-se que ” o senhor Constantino Lira, seu responsável, convenceu-se que estava numa festinha de aldeia”.

Nas festas de 1950, serão inaugurados o edifício das repartições públicas, conhecido na Barca como o “edifício” e que hoje alberga a Câmara Municipal, e o Bairro Municipal. Durante as inaugurações, o hino nacional foi cantado pelo Orfeão Barquense. “Nem a chuva, que caiu no dia 23 à noite, esmoreceu a alegria do povo”, escreve-se no “Povo da Barca”. Ainda nesse ano, voltou a realizar-se a procissão, o que não sucedia há mais de 30 anos.

Em 1952, “por determinação superior”, não se realizou a feira do gado, um dos números mais tradicionais e que, em anos anteriores, tinha chegado a contar com a participação de “500 juntas de bois”.

1954 é, em minha opinião, o ponto mais alto da longa história do S. Bartolomeu. O comércio e a Câmara não se entendem para formar uma comissão, oficialmente não há festas, mas, no dia que a tradição impõe, o povo veio para a rua, festejou, simulou sessões de fogo, a GNR interveio, prendeu pessoas, mas a festa realizou-se numa espontânea e comovente manifestação de amor pela romaria. Sem programa e sem ornamentação.

Em 1958, organiza-se, pela primeira vez, um cortejo denominado etnográfico – recorde-se que, em anteriores edições, se tinham já realizado desfiles de gado e do traje – que será reeditado nos anos 80.

Na década de 60, começam a ganhar importância a corrida de cavalos, sobretudo o trote travado, os bailes populares ( em 1960, actuaram o conjunto Tony, de Viana do Castelo, e o conjunto Barquense e vocalistas) e há um investimento nos aspectos mais característicos como os cantares ao desafio. Em 1968, chega mesmo a realizar-se, curiosamente no dia 24 e à tarde, um desfile de rusgas que, reeditado noutros moldes, mais de 20 anos depois, se tornará no autêntico ex-libris da romaria.

Mas esses são, também, anos marcados pela actuação de grandes Bandas de Música : a da GNR e a da PSP, em 1967 (ano em que as festas se realizaram de 20 a 27 de Agosto!), e a da Força Aérea Portuguesa, em 1968, e pela realização de iniciativas muito marcadas pela época como o concurso de vestidos de chita que ocorreu em 1960.

Na década de 70, com a emigração, o aumento do nível de vida e o incremento dos transportes, a romaria perdeu um dos seus aspectos mais peculiares – o facto de durar toda a noite, visto que as pessoas das freguesias, não tendo meios para regressar a casa, permaneciam na vila do primeiro ao último dia das festas. 

Hoje, principalmente por via das rusgas, as noites de S. Bartolomeu voltaram a ser inigualáveis de animação e alegria.

Nos últimos 25 anos, novas iniciativas como o primeiro cortejo histórico, o cortejo histórico nocturno, as 24 horas a dançar o vira, a implementação do espaço das tasquinhas, os concertos de música popular, a entrada para o livro dos recordes com o maior número de pares a dançar o vira, associados a um crescente e bem sucedido investimento nos aspectos mais tradicionais da romaria – que encontram na noite de 23 o seu ponto mais alto  – tornaram o S. Bartolomeu uma das maiores e a mais marcadamente espontânea das romarias minhotas.

E este ano, como todos os anos repetimos, a Romaria voltará a ser a maior de sempre!

Repetimos, no fundo, gestos, palavras e emoções centenárias, elos na cadeia de uma tradição que se tem tornado cada vez mais viva e que, com certeza, por novos séculos se prolongará.

Arnaldo Varela de Sousa
(Por vontade do autor este texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico)